terça-feira, 26 de julho de 2016

Uma biografia adulterada

No dia 24 de abril de 1992, nasceu um bebê que veio para mudar o mundo, assim como todos os outros bebês, eu penso. Na verdade, a história desse bebê, eu, começou bem antes disso com o encontro de duas almas no meio das milhares de outras almas que habitam nosso universo. Talvez esse encontro que deu origem à minha vida tenha uma explicação cósmica ou divina, uma explicação de outros tempos, mas falar sobre destino ou acaso só prolongará minhas questões sobre a missão humana na Terra. Acredito que estamos aqui nesse mundinho para fazer alguma diferença na vida de alguém. Na vida de “alguéns”. Acreditem, não é fácil se dar conta disso, já posso adiantar para vocês. Segundo os astros, o sol em touro, o ascendente em capricórnio e a lua em aquário já me colocaram no campo da criatividade – o que eu nunca recusei. Desde nova, trocava as bonecas, pedaços de plástico com fios loiros platinados e seios exuberantes, por um rádio sintonizado nas melhores músicas dançantes das rádios locais. A Cida me colocava para dançar. Eu amava. Cida era a moça que trabalhava lá em casa. Cida trabalhou durante 13 anos lá em casa para cuidar de mim. No Brasil, eu só fui entender o hábito da empregada doméstica quase 20 anos mais tarde. Foi ela a grande responsável pela minha liberdade infantil de embalar meu corpo no ritmo da música, o que despertou a atenção da minha mãe e fez com que eu acabasse, com apenas 4 anos, na escola de dança. Precoce, já entrei na turma um pouco mais avançada e, durante 10 anos, vivi a dança como sopro principal da minha vida. Eu vivi a dança com seriedade e absorvi a responsabilidade, pontualidade e o respeito pela hierarquia em uma sala de aula ou em um ambiente de trabalho. Na adolescência, precisei interromper meu sonho de ser bailarina por saber que, dentro da sociedade em que vivia, minhas condições físicas não permitiriam que eu exercesse profissionalmente essa profissão, pelo menos não como bailarina clássica. Eu vivia disso seis dias por semana, sem folga, sem férias. Precisei abandonar aquela imersão no mundo da dança por necessidade, mas eu era sedenta por arte. Eu iria descobrir isso muito em breve. Quando me deparei com o buraco que esse abandono deixou em minha vida, pensei que a solução seria experimentar algo novo e resolvi me arriscar no teatro. Foi aos 14 anos, então, que entrei, pela primeira vez, numa sala de aula de teatro. Foi mágico. Penumbra, cortinas, chão preto de madeira, cadeiras dispostas formando uma plateia, jovens sonhadores, um professor quase palhaço e um palco. De verdade. Um palco. Eu já conhecia os palcos e as coxias, mas naquele momento meu corpo reconheceu o espaço de uma maneira diferente. Opa. Peraí. Tem voz? Tem fala? Tem eu? Tem Bárbara? Ah, prazer, meu nome é Bárbara. Bárcia. Bárbara Bárcia. Com acento. Quer dizer, sem acento. No artístico tem acento. Mal comecei, já tinha nome artístico. Eu já não era mais a bailarina, era outra função que estava invadindo meu corpo e mandando ordens para meus músculos. Músculos antes tão passivos. É lindo como esse conjunto de matéria tem memória. Consciência corporal, dizem. Desde esse encontro energético com a caixa do teatro, venho me profissionalizando na arte de interpretar. Uma loucura consciente que não consegui mais abandonar. No meio do caminho, outra paixão: as câmeras. Os registros audiovisuais começaram a me encantar e as pessoas, por suas histórias, começaram a se tornar personagens atraentes e interessantes. O dom de observar. Com 15 anos fui para a Amazônia em um trabalho voluntário. Eu e mais poucos colegas levamos donativos para os indígenas e demos aulas de higiene durante 15 dias nas aldeias e comunidades ribeirinhas. Conheci a Amazônia, atravessei a fronteira a pé para Letícia, na Colômbia, meu único contato até então com o país. Após essa viagem, eu percebi que essas duas paixões não poderiam mais sair da minha vida e foi assim que eu entendi que o jornalismo estaria presente de alguma forma na minha caminhada profissional. Minha única saída seria lidar com o fato de que eu precisaria de tempo, paciência e responsabilidade para me dividir em mil tarefas para dar conta de tantos desejos. Eu disse que as pessoas vêm ao mundo para fazer a diferença na vida dos “alguéns" e, ao aceitar que meus interesses mesclavam artes, informação e pessoas, meu destino – se é que agora encontro uso para essa palavra – seria utilizar tudo isso para marcar a vida dos seres humanos que cruzassem meu caminho. Para marcar esses seres, precisei e preciso trocar energia e esquecer qualquer pré-conceito que possa surgir nessas relações. Eu comecei a entender que precisaria deixar o fluxo energético entrar em contato com todos meus sentidos e comecei a entender que meus encontros não eram definidos pelo destino, inexplicável em seu todo, mas pela energia que eu liberava ao pensar nas minhas vontades. Hoje me encontro trabalhando em um canal de televisão, entrevistando pessoas, contando histórias, produzindo conteúdos culturais e tendo a incrível oportunidade de me candidatar a uma bolsa que uma amiga viu no feed dela do Facebook. Após morar um ano na França, viajar sozinha pela Ásia, trocar experiência em alguns lugares do mundo, deposito minha energia para conquistar essa nova oportunidade de desbravar mais uma parte do mundo, conhecendo personagens importantes para contar uma nova história. Que os astros se alinhem para que minha singela e pequena biografia possa ter mais um capítulo. Dessa vez, na Colômbia. O resto eu escrevo de lá.